Os portugueses não formam uma sociedade porque não são
sócios uns dos outros. Tomemos os exemplos mais corriqueiros. Na cidade velha,
vai-se pela rua e pode-se apanhar com sacos de migas de pão ralado, atirados
aos pombos, na cabeça. E a rua está cheia de cagadelas de cão, coisa que não se
vê em mais cidade nenhuma, porque cada um entende que o espaço público se pode
sujar à vontade. Lisboa é habitada por uma horda que usa fato e gravata e anda
de automóvel, mas que não chegou sequer ao patamar mínimo de civilização
urbana. Começa-se sempre de cima para baixo. A Lisboa 94, com a sua falta de
ideia, fez várias coisas em cima sem haver nada em baixo, confundiu arte com
cultura. A cultura começa nas ruas onde se pode andar, no ambiente cuidado, nos
jardins tratados, que não existem.
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Há um total desprezo do próximo, uma falta de noção dos
direitos e deveres urbanos civilizacionais. Soube agora de um caso que se passa
num prédio normal do centro da cidade. Há alguém que guarda a moto do filho de
família no patamar entre o terceiro e o quarto andares e, quando lhe vão dizer
que não o pode fazer, essa gente que é licenciada fecha a porta, dizendo: «A
moto é minha, eu faço o que eu quero!» Tal e qual como o sapateiro que bate no
filho e diz: «O filho é meu, eu faço o que quero!». É a sociedade do «salve-se
quem puder». A maior parte das discussões que se geram em bichas, em lugares
públicos onde se reclama um direito, resulta da falta de noção muito exacta que
qualquer alemão, francês ou italiano tem dos seus direitos e deveres. Aqui é
tudo uma «questão particular». Passa a não ser uma sociedade organizada mas um
clã. É simpático, de repente, encontrarmos uma grande humanidade e intimidade
onde menos esperávamos. Sabe bem mas o preço é caro, implica um dia-a-dia desgastante,
onde tudo funciona improvisada e desastradamente. Nem se pode andar pelas ruas
porque os carros ocupam os passeios. São insignificâncias que vão criando e
alimentando quotidianamente um mal-estar, um cansaço, uma perda de energia.
Quando ando pela Baixa duas ou três horas, começo a sentir um esgotamento de
tipo espiritual, ao contrário do que acontece em qualquer cidade europeia em
que fico mais alerta, enérgico e cheio de ideias. Aqui, começo a arrastar os
pés e a andar em passo de procissão, que é como fazem os portugueses, um pouco
vergados, dai a metáfora de trazer um peso nas costas. Há, de facto, um peso
qualquer que está lá dentro, nas costas do espírito. Este país é como uma
eterna pequena constipação.
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E esta fatídica vocação para as pantufas… Conta-se que,
depois do terramoto, alguns aristocratas que ficaram sem palácio instalaram-se
em barracões onde é hoje o Rato, com grande promiscuidade e as couvinhas lá
atrás. Quando os palácios ficaram prontos, não queriam sair, pois era ali que
lhes sabia bem. Isto define a mentalidade portuguesa.
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A arte em Portugal não tem a ter com a vida. O museu e o
espectáculo são coisas que se passam em lugares fechados, com horário e um
culto feito em grande parte de snobismo e de obrigação social. Daí o grande
desconforto dos artistas em Portugal, uma espécie de marcianos, porque aquilo
que fazem não tem nada a ver com os interesses da sociedade. Em Itália. o
cidadão mais humilde tem uma intuição, um conhecimento e uma veneração pela
arte que aqui terá talvez o equivalente na veneração pela Nossa Senhora de Fátima.
Até coincide porque é a veneração por um desconhecido, pelo que está para além
da razão. Se não houvesse motivos exteriores, não creio que fizesse falta a
quem quer que fosse ir a exposições de pintura, ao teatro ou à ópera.
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Há um egoísmo perfeitamente catastrófico que caracteriza os
portugueses. No seu dia-a-dia, desde que tenha resolvido o seu problemazinho e
possa comer o seu bifinho com batatas fritas ou o seu bacalhauzinho, já tira
dai um prazerzinho que o deixa satisfeito. O Eça usou todos esses diminutivos
com razão, porque tudo é pequeno, da dimensão ao espírito. Satisfazem-se com
pouco.
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Outra característica dos portugueses é ter medo do risco,
podem cair no ridículo, que fica muito mal. Ora para fazer grandes coisas, é
preciso arriscar cair do trapézio. Mas os portugueses preferem trabalhar com
rede ou então a um metro do chão. Os Descobrimentos foram uma necessidade
porque essa gente que vinha do Norte do Pais, a cair de fome e a morrer pelo
caminho, não tinha outra hipótese. E não esqueçamos os mercenários. Os relatos
deixam-nos imaginar o tormento daquelas viagens, com doenças e sem comida, em
condições de puro desespero. Depois, lá veio a mitificação histórica.
Obviamente haveria alguns, poucos, a começar pelo infante D. Henrique, que teriam
o seu projecto de alargar a Terra, de chegar a qualquer lado e de tirar lucro,
que é o que faz correr o homem. O Camões diz textualmente, n’Os Lusíadas, que
«nunca houve nação, nem bárbara, que prezasse tão pouco as artes como a
portuguesa». E o padre António Vieira dizia, naquelas etimologias divertidas,
que o mundo é mundo porque, por antífrase, é imundo tal como a Lusitânia se
chama assim já que não deixa luzir ninguém por causa da inveja. E podíamos
continuar com o Eça, com o António Nobre, com os que reflectiram porque tiveram
oportunidade de comparar… (…).
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Vivi na Alemanha muitos anos e pude constatar que o mito do
amor ao trabalho dos Alemães é falso. Não gostam de trabalhar, mas sabem que e
preciso. Por isso, fazem-no o mais eficientemente possível. Durante o trabalho,
os alemães não conversam sobre futebol nem as alemãs falam de meninos, como
aqui. E fora dele é tabu falar sobre isso. Ao contrário de Portugal, onde se
passa o almoço a falar do trabalho, uma paranóia perfeita.
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Enquanto a Europa é urbana e civilizada há muito tempo, em
Portugal o crescimento faz-se por saltos muito grandes. Temos a ideia de que o
progresso é deitar fora o que há e substituir pelo novo, o que mostra que não o
conseguimos integrar. Em cada época, há elementos que definem o novo-riquismo.
No século XVI, o embaixador do Papa escrevia para Roma a dizer que não entendia
porque é que o barbeiro, um homem muito pobre, tinha um pretinho para lhe
carregar a bacia quando ia fazer a barba a casa do cliente. Na Segunda Guerra,
houve o boom dos novos-ricos do volfrâmio e dizia-se que eles comiam a sardinha
assada com pão-de-ló. Hoje continua e, apesar do novo-riquismo destes anos em
que já somos europeus, basta por o pé para lá da fronteira para perceber que
somos cada vez menos em termos culturais. Temos o mito das melhores praias, dos
melhores vinhos, mas quanto tempo vão durar? Há terrenos próximos de Lisboa, na
zona do Ribatejo, que estavam classificados para agricultura exclusivamente. Há
três ou quatro anos saiu um decreto que permite utilizá-los para campos de
golfe desde que sejam reconvertíveis. Daqui a 15 anos, comeremos bolas de golfe
em vez de couves…
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Os Ingleses, mesmo lá no extremo do Sahara, continuam a
manter a nacionalidade e a beber o chá das cinco porque têm uma personalidade
forte. Mas um português na Alemanha, ao fim de cinco anos é alemão, e no Japão
torna-se um autêntico japonês. Tem uma capacidade espantosa de adaptação, uma
qualidade que lhe facilita a vida, mas que é sinal de uma personalidade fraca. O
nosso racismo é económico. Tratamos com servilismo os que têm mais dinheiro que
nós, embora haja quem diga que isso é a cordialidade do português a acolher os
estrangeiros.
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Tal como há quem diga que a língua portuguesa é o espanhol
sem ossos. Compare-se o «quero-te» com o «te quiero»: enquanto num a entoação
morre no fim, no outro a afirmação é evidente logo no som. É como se nem na
língua tivéssemos coluna vertebral.
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Portugal ficou a meio caminho entre o Norte de Africa e a
Europa. E não se consegue definir. É pobre combinar as coisas sem definir uma
ideia e uma identidade próprias. Não há, em Portugal, politica no sentido
autêntico da palavra, uma ideia de sociedade para dar forma ao Estado. Não há
partido que a tenha, excepto, talvez, o comunista, mas não é uma ideia própria.
Os políticos portugueses, tal como os artistas, são preguiçosos, pouco
competentes e bastante diletantes”.
Alberto Pimenta
Diário de Notícias, 29 de Janeiro de 1995
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